Belo Horizonte

Cidade planejada em detalhes e festejada em seus primórdios. Depois, homenageada em verso e prosa pelos grandes nomes da moderna literatura brasileira: Barreto, Drummond, Cyro dos Anjos, Henriqueta Lisboa, Pedro Nava e muitos outros.
No decurso de sua história de cento e quinze anos, foi chamada de cidade jardim, exibiu um horizonte magnífico, cercado pela Serra do Curral, teve muitas primaveras floridas, esbanjou elegância arquitetônica e enfrentou com valentia muitos vendavais de ganância imobiliária e vaidade política. Sucessivas reconstruções ocorreram sem seu solo – algumas necessárias, mas muitas lamentáveis.
Hoje centenária, dá sinais de exaustão; não suporta mais tantos equívocos e desmandos. De “cidade vergel” passou a cidade concreto. Ver seu horizonte? Só de cima dos arranha-céus. O estilo arquitetônico, ora neoclássico, não se pode mais definir, transformou-se numa verdadeira babel. De positivo, sobrevivem pontos isolados de beleza e reminiscências do que foi belo um dia. Por mais que a depredação cresça, o belo relevo da região ainda oferece aos habitantes paisagens de tirar o fôlego, capazes de sensibilizar até a alma mais bestial.
Para o futuro, espera-se que tanto a população quando os administradores municipais sejam tocados pelos recados constantes da natureza e recuem da insensatez e ambição desenfreada. Que não seja mais preciso protestar radicalmente como Carlos Drummond de Andrade:
TRISTE HORIZONTE



Porque não vais a Belo Horizonte? a saudade cicia
e continua branda: Volta lá.
Tudo é belo e cantante na coleção de perfumes
das avenidas que levam ao amor,
nos espelhos de luz e penumbra onde se projetam
os puros jogos de viver.
Anda!Volta lá, volta já.

E eu respondo, carrancudo: Não.
Não voltarei para ver o que não merece ser visto,
o que merece ser esquecido, se revogado não pode ser.
Não o passado cor-de-cores fantásticas,
Belo Horizonte sorrindo púbere núbil sensual sem malícia,
lugar de ler os clássicos e amar as artes novas,
lugar muito especial pela graça do clima
e pelo gosto, que não tem preço,
de falar mal do Governo no lendário Bar do Ponto.
Cidade aberta aos estudantes do mundo inteiro, inclusive Alagoas,
"maravilha de milhares de brilhos vidrilhos"
Mario de Andrade mente celebrada.
Não, Mário, Belo Horizonte não era uma tolice como as outras.
Era uma provinciana saudável, de carnes leves pesseguíneas.
Era um remanso, era um remanso
para fugir às partes agitadas do Brasil
sorrindo do Rio de Janeiro e de São Paulo: tão prafentrex, as duas!
e nós lá: macio-amesendados
na calma e na verde brisa irônica. . .

Esquecer, quero esquecer é a brutal Belo Horizonte
que se empavonava sobre o corpo crucificado da primeira.
Quero não saber da traição de seus santos.
Eles a protegiam, agora protegem-se a si mesmos.
São José, no centro mesmo da cidade, explora estacionamento de automóveis.
São José dendroclasta não deixa de pé sequer um pé-de-pau
onde amarrar o burrinho numa parada no caminho do Egito.
São José vai entrar feio no comércio de imóveis,
vendendo seus jardins reservados a Deus.
São Pedro instala supermercado.
Nossa Senhora das Dores,
amizade da gente na Floresta,
(vi crescer sua igreja à sombra do Padre Artur)
abre caderneta de poupança,
lojas de acessórios para carros,
papelaria, aviários, pães-de-queijo.

Terão endoidecido esses meus santos
e a dolorida mãe de Deus?
Ou foi em nome deles que pastores
deixam de pastorear para faturar?
Não escutem a voz de Jeremias
(e é o Senhor que fala por sua boa de vergasta):
"Eu vos introduzi numa terra fértil,
e depois de lá entrardes a profanastes.
Ai dos pastores que perdem e despedaçam
o rebanho de minha pastagem!
Eis que os visitarei para castigar a esperteza de seus desígnios".

Fujo da ingnóbil visão de tendas obstruindo as alamedas do Senhor.
Tento fugir da própria cidade, reconfortar-me
em seu austero píncaro serrano.
De lá verei uma longínqua, purificada Belo Horizonte
sem escutar o rumos dos negócios abafando a litania dos fiéis.
Lá o imenso azul desenha ainda as mensagens
de esperança nos homens pacificados - os doces mineiros
que teimam em existir no caos e no tráfico.
Em vão tento a escalada.
Cassetetes e revólveres me barram
a subida que era alegria dominical de minha gente.
Proibido escalar. Proibido sentir
o ar de liberdade destes cimos,
proibido viver a selvagem intimidade destas pedras
que se vão desfazendo em forma de dinheiro.
Esta serra tem dono. Não mais a natureza
a governa. Desfaz-se, com o minério
uma antiga aliança , um rito da cidade. Desiste ou leva bala. Encurralado todos,
a Serra do Curral, os moradores
cá embaixo. Jeremias me avisa:
"Foi assolada toda a serra; de improviso
derrubaram minhas tendas, abateram meus pavilhões.
Vi os montes, e eis que tremiam.
E todos os outeiros estremeciam.
Olhei a terra, e eis que estava vazia,
sem nada nada nada".

Sossega minha saudade. Não me cicies outra vez
o impróprio convite.
Não quero mais, não quero ver-te,
meu Triste Horizonte e destroçado amor.


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