Amor, convivência e conveniência

Nadja neves Abdo

Parte 1

Em seu belíssimo livro “Mapa para amantes perdidos”, Nadeen Aslan* dá vida a personagens que se relacionam das mais variadas formas, tendo suas vidas movidas pelas circunstâncias e delimitadas por uma gama de sentimentos avassaladores, sabiamente descritos pelo autor. O amor não é posto como um sentimento idealizado, mas sim como resultado de almas e corpos que um dia se atraíram, mas que lutam para sobreviver à convivência exaustiva. Embora a trama aconteça na Inglaterra, nos anos de intolerância com os imigrantes e seus hábitos culturais e religiosos - acrescido do choque entre paquistaneses e indianos em território britânico - a história é universal.   E, para maior complexidade, ainda existe o choque de gerações entre os emigrantes originários do Paquistão e seus filhos, na maioria já nascidos na Inglaterra. Um toque sutil, mas permanente no texto, é a crítica ao fanatismo religioso, que acrescenta certo humor à narrativa.  Ao fazer devaneios sobre as paisagens naturais, a luminosidade, os insetos, os pássaros - de forma mágica e envolvente - o autor proporciona um tempo de absorção e reflexão sobre os dramas humanos que vão se desenrolando no entorno. A despeito da poesia presente na narrativa e do esmero na condução da trama, fica claro que os aludidos amantes não foram atraídos pelo amor genuíno e sim pelo amor circunstancial. Há um pouco de tudo que é próprio da essência humana, de qualquer raça ou credo: paixão, violência, fanatismo, colisões, compromissos morais, insatisfação, desejo, ódio, solidão...
 
De pé no vão da porta aberta, Shamas observa atentamente a terra, o ímã que ela é, atraindo para si flocos de neve do céu. Em seu passo deliberado quase protelado, eles caem como penas que afundam na água...A neve cai e, sim, a mão estendida no caminho dos flocos é a mão que pede de volta a estação agora perdida.”
  “Ela voltou para casa, chocada com a veemência daquele discurso. Ao longo do caminho que percorrera até à loja, pensara que a família teria perdoado o casal, que os pais se teriam lembrado de que todas as pessoas amavam alguém antes do casamento, sendo o amor um fenómeno tão remoto e sagrado como Adão e Eva. As mulheres gracejavam entre si:
 - Por que achas que uma noiva chora no dia do seu casamento? Pelo amor ao qual esse mesmo casamento põe termo para toda a eternidade. Os homens podem pensar que uma mulher não tem passado – “nasceste e, em seguida, eu casei contigo” -, mas os homens são tolos."
“Será que ela pensa que as pessoas a julgariam? O mundo não passa constantemente sal pelas nossas feridas: pelo contrário revestiu-nos de sal de antemão para que, sempre que nos ferimos seja duplamente doloroso.” 
Ao ler Mapa dos amantes perdidos, o leitor deve ficar atendo às constantes metáforas que permeiam a narrativa. O tratamento delicado, mas dramático, dado pelo autor aos personagens é fantástico: Aslan delineia com maestria suas personalidades, defende cada um em suas convicções e necessidades individuais, ao mesmo tempo em que os responsabiliza emocionalmente pelo desfecho inexorável de suas vidas, resultante de suas próprias escolhas e renúncias.
 
Parte 2
Refletindo sobre o tema “amor”, a partir de Mapa dos Amantes Perdidos, começo a perceber a fantasia construída acerca dessa concepção. O livro a desmistifica, revelando as verdadeiras facetas dos variados sentimentos que levam as pessoas a compartilharem uma vida, ou parte dela. Dentre elas, aparece sim o amor, mas numa ótica mais complexa e interdependente de vários fatores e concepções. Até certa altura da vida, eu pensava que o amor existisse a despeito de tudo (na juventude, temos a necessidade vital de crer em utopias e achar que elas possam ser realizadas). Eu acreditava naquele amor decantado em verso e prosa, naquele modelo hollywoodiano arrebatador de corações, nas canções italianas que me levavam às lágrimas. No entanto, havia algo curioso: nunca o vivenciei plenamente, nem fui testemunha de que ele – o tal amor – tivesse sido vivido por alguém naqueles moldes.
A idealização do amor fez com que ele se tornasse algo para além das possibilidades humanas. Já a paixão, esta sim, anda por toda parte.  Urgente, visceral, excitante... mas efêmera. Tão rápida, tão frágil, que logo se reduz ao nada, quando muito a uma lembrança fugaz. Em geral, o que existe, de fato, entre as pessoas comuns está mais para “gostar”, ou seja, ter “afeto/amizade/afinidade/atração/proteção”, que pode se desenrolar em convivência respeitosa ou ruidosa. E esses sentimentos são muito mais razoáveis, plausíveis e verdadeiros, compatíveis com o ser humano. Isso pode ser facilmente constatado, quando há separação. Como o cenário muda, como tudo fica relativo, até mesmo antagônico! Do “eu te amo” ao “eu te odeio”, o caminho é curto e cruel.
 
Mas, por que o tão alardeado amor não pode ser visto andando por aí aos quatro ventos, perfumando a vida, colorindo os ambientes, humanizando as pessoas? Foi preciso alcançar a maturidade - que não tem idade certa para acontecer – para finalmente concluir que não há s amar e conviver em plenitude, tendo em vista que tal proeza demanda muita generosidade e desprendimento. O egoísmo está de tal forma latente na natureza humana, que dificulta ou impossibilita uma convivência permeada de amor ao próximo, puro e leal. O único amor genuíno, em princípio, é aquele que não foi vivido, que ficou transitando pelas esferas do imaginário.
Não se trata aqui de desmerecer as relações humanas e reduzi-las a nada. O contato entre as criaturas é inegavelmente necessário e precioso. É com a convivência que aparamos nossas arestas, transigimos em nossas convicções mais enraizadas, desfrutamos prazeres inimagináveis, como também experimentamos a necessidade paradoxal de ficar a sós.
Ao mesmo tempo em que é saudável viver em comunhão, é preciso considerar que vidas por demais entrelaçadas acabam por colocar em risco a individualidade, dificultando o crescimento pessoal. O modelo de relacionamento amoroso predominante impõe sérias restrições à liberdade de ação e expressão, o que torna a convivência um ônus muito alto. Mas nem sempre isso é perceptível aos envolvidos, porque a interdependência acaba por se tornar algo tão vital, tão conveniente, que a simbiose não mais permite distinguir cada personalidade. Nessa perspectiva, o que se dá o nome de amor é algo tão divergente do que se vive, que nos leva a verificar uma significativa inconsistência metalinguística.
Mas há que se considerar nesta análise, o amor na perspectiva universal, ocidental e oriental. No primeiro caso, trata-se do amor a que Paulo de Tarso se referiu em “Coríntios 13”, aquele que diz respeito à caridade e misericórdia. No que se refere ao amor ocidental, encontra-se uma flagrante preponderância de sentimentos carnais, de circunstâncias matérias favoráveis(gregarismo) ou de lavagem cerebral promovida pelas igrejas. No outro extremo, acha-se o amor oriental, permeado de pudores exacerbados e regido por dogmas religiosos radicais. Dessa tríade, pode-se facilmente fazer inferências, sem qualquer temor de erro. O primeiro é o ideal, mas intangível. Quanto aos outros dois, são formas paradoxais da mesma verdade: o ser humano não carrega em sua natureza egocêntrica a capacidade de amar incondicionalmente. Tudo o mais que se diga, é rocambolesco.

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*Nadeem Aslam (nascido em 11 julho de 1966, [Gujranwala , Paquistão) é um premiado romancista paquistanês britânico  Nadeem Aslam se mudou com sua família para o Reino Unido com 14 anos, quando seu pai, um comunista, fugiu do regime do Presidente Zia e estabeleceu-se em Huddersfield , West Yorkshire, UK .
Mais tarde, estudou bioquímica na Universidade de Manchester, mas deixou o curso em seu terceiro ano para se tornar um escritor. Aos 13 anos, Aslam publicou seu primeiro conto em Urdu, em um jornal paquistanês. Seu romance de estréia, Estação das Rainbirds (1993), estabelecidos no Paquistão rural, ganhou a Betty Trask e o Clube Primeiro Prêmio Novel do autor. Seu próximo romance, 2004, Mapas para amantes perdidos, está situado no meio de uma comunidade paquistanesa imigrante em uma cidade Inglesa ao norte. O romance levou mais de uma década para ser concluído, e ganhou o Prêmio Kiriyama . O terceiro romance de Aslam, A Vigília Perdida, foi publicado pela Alfred A. Knopf, em setembro de 2008. Ele é passado no Afeganistão . Ele viajou para o Afeganistão durante a escrita do livro, mas nunca tinha visitado o país antes de escrever o primeiro rascunho, Em 11 de fevereiro de 2011, foi pré-selecionado para o Prémio Warwick . A quarta novela de Aslam é Garden, o homem cego (2013). Está situado na região oeste do Paquistão e Leste do Afeganistão e olha para a guerra contra o terror através dos olhos dos personagens locais, islâmicos. Ele contém também uma história de amor vagamente baseado no romance Punjabi tradicional de Heer Ranjha. Aslam recebeu um Encore em 2005. Ele escreve seus rascunhos em escrita comum e prefere isolamento extremo durante o trabalho.

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