Epidemia de substantivos abstratos

Nadja Neves Abdo

O mundo atual vem sofrendo de um fenômeno linguístico sem precedente: o uso abusivo e indiscriminado de substantivos abstratos, carregados de ideologias e simbolismos, em geral representando utopias. Os discursos contemporâneos não dispensam tais terminologias, por considerá-las impactantes e de forte poder de persuasão. Democracia, cidadania, fraternidade, paz, preconceito, direitos, deveres, solidariedade, sustentabilidade, socialismo e outros ismos são palavras de ordem em todas as formas de comunicação falada e escrita.
Há, do ponto de vista psicológico, uma opção por vezes consciente pelos substantivos abstratos, porque eles têm sentido relativo e, assim sendo, relativizam a responsabilidade de quem os profere. São ideais para discursos políticos, pois oferecem a oportunidade de escorregar da palavra empenhada: “Eu falei com sentido amplo, sem prazo determinado...” Não foi bem isso que eu quis dizer...” “vocês interpretaram mal as minhas palavras...”
Assim, exauridas pelo uso, pelos subterfúgios, pela inconsistência e falta de sintonia com a vida real, vão se tornando lugar comum e cheiram a hipocrisia. E como se não bastasse, aparecem acompanhadas de uma adjetivação abundante, que não acrescenta nada de concreto, servindo apenas para rebuscar o discurso e causar impressão de intelectualidade.
O que significa democracia, se o poder do povo é massacrado pelo poder político? O que quer dizer cidadania se as pessoas são reféns do sistema e dos mandatários? E a tal fraternidade, por onde anda, se cada um só pensa em garantir o seu? Paz? O que é isso, em meio a guerras, jogos de poder, potencial bélico e tanta violência urbana? E a tal sustentabilidade, que é top de linha, como anda?Pelo que se tem notícia, o Planeta nunca esteve tão poluído...E nessa incoerência semântica vão as outras abstrações, perdidas em seu distanciamento da realidade.
O homem comum dá sinais de que já não suporta esse vazio lingüístico; clama por substantivos concretos tais como casa, comida,transporte,luz,água, esgoto,dinheiro...e outras coisas singelas, de fácil pronúncia, mas que dão dignidade à existência.

Comentários

  1. Os ditos intelectuais, líderes políticos e religiosos deste país são figuras abstratas e é neles que a grande maioria se espelha. O presidente desta pátria, figura máxima de uma nação, não consegue sequer elaborar uma frase sem cometer erros crassos de português, e lembremos, se vangloria disto.
    "O que preocupa não é o grito dos ignorantes, mas o silêncio dos verdadeiros formadores de opinião" parodiando Martin Luther King

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  2. A melhor opção da classe dominante do país é manter a opressão cultural e mental do povo.
    Abaixo a instituição das mentiras!

    Ernesto Correa de Oliveira

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  3. É sempre um prazer ler a verdade especialmente quando ela é escrita em poucas porém claras linhas! Fico muito feliz de poder ter acesso a essas pérolas escritas pela Educadora, Crítica Literária, Colunista, Blogueira e Super Avó Nadja Neves Abdo.

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